Amar até o fim: o que fazer quando a medicina não pode curar

 

Maria Fernanda Carvalho é graduada em Medicina com residência em Medicina Interna. Atualmente é  coordenadora médica do Hospital São Marcelino Champagnat
Créditos: divulgação

Maria Fernanda Carvalho*

Não é fácil soltar as mãos de pessoas queridas, principalmente quando falamos daqueles que seguram as nossas desde que chegamos a este mundo. Encarar a morte é sempre um desafio para a mente, o espírito e até mesmo o corpo. Ânsia, dores de cabeça, nas costas, nos braços, choro descontrolado ou apatia - todos são sintomas de que o que está chegando ao fim é, mais que a história de outra pessoa, uma parte da nossa própria história que só aquele coração carregava consigo. Dizer adeus, no entanto, é trecho essencial do caminho da vida humana.

O que se faz com essa despedida depende de inúmeros fatores, alguns mais controláveis e outros menos. Mas, no caso de quem adoece um pouco mais a cada dia, falar sobre o fim e discutir as melhores abordagens para o paciente e os familiares é uma maneira de continuar apertando aquela mão entre os dedos enquanto for possível. Oficialmente, o que hoje se chama de cuidados paliativos surgiu no Reino Unido, na década de 1960. Mais de 60 anos depois, ainda falta conhecimento, até mesmo aos profissionais de saúde, sobre de que forma esses cuidados podem ser aplicados em cada caso.

Algumas decisões são mais dramáticas e, por isso mesmo, mais conhecidas. Quando manter os aparelhos ligados? Quando optar por medidas extremas, que podem prolongar a vida, mas causarão danos à qualidade de vida? Quando seguir com uma cirurgia que tem risco de morte? Esse tipo de questionamento, que está no limite das decisões impossíveis, também faz parte do paliativismo, mas este não se resume ao limite. Considerar que alguém está em cuidados paliativos tampouco significa que nada mais deve ser feito por essa pessoa, mas, ao contrário, significa que tudo o que for feito por ela deve levar em consideração, em primeiro lugar, seu bem-estar físico, emocional e, por que não, espiritual.

Não se trata de nada fazer, mas de permitir que aquele ser humano tenha qualidade de vida e conforto durante aquele momento da existência neste mundo. Enquanto, no começo do século passado, nós vivíamos apenas até perto dos 40 ou 50 anos, os avanços na medicina, como a descoberta de muitas vacinas e medicamentos, e nas noções de higiene básica, como melhoria no saneamento e acesso à água potável, possibilitaram que essa expectativa de vida subisse para perto dos 70 ou 80 anos, dependendo da região em que se vive. No entanto, esse aumento não vem sem ônus. Viver mais também significa ter mais chances de receber, em algum ponto, o diagnóstico de uma doença grave.

É preciso, então, entender que a finitude é um destino inescapável para todos nós, nossos pais, filhos, amigos, irmãos, companheiros. Daí a urgência de falar sobre ela. Ao deparar-se com uma doença grave, conhecer a história de vida daquela pessoa, suas crenças e suas diretivas antecipadas - por exemplo, quando deixou claro que não queria ficar em uma cama - é fundamental. Outro ponto importante é a cultura familiar, o conjunto de características que cerca cada família e também a compreensão que essa família tem sobre a doença do paciente. Por fim, também importa muito conversar com paciente, família e equipe multidisciplinar prezando sempre pela ortotanásia, que é a morte no seu tempo certo/natural, sem utilizar meios que encurtem o tempo de vida e também sem prolongá-la artificialmente com tratamentos que causam mais desconforto.

Embora a medicina não seja capaz de curar todas as doenças, ela é capaz de oferecer cuidados que trazem alívio para o sofrimento físico até os últimos segundos de vida. Ironicamente, quando abrimos mão de tentar prolongar a vida a qualquer custo, muitas vezes estamos oferecendo ao paciente a possibilidade de viver mais e melhor. De acordo com a Worldwide Hospice Palliative Care Alliance (WHPCA), 20 milhões de pessoas morrem com estresse e dores desnecessários todos os anos. E, ironicamente, há estudos que mostram que pessoas que não têm acesso a cuidados paliativos desde o diagnóstico acabam vivendo menos tempo do que poderiam se tivessem tido esse acesso.

Precisamos parar de encarar os cuidados paliativos como um luxo ou mesmo como uma forma de deixar que nossos entes queridos morram sem fazer nada por eles. Ao contrário, abraçar o paliativismo é fazer tudo. Tudo o que os milênios de avanços médicos e tecnológicos podem oferecer para garantir uma vida plena e bem vivida até o fim. E, muitas vezes, fazer tudo é permitir que essa pessoa descanse, quando chega a hora, respeitando sua história e suas batalhas, suas dores e seu sofrimento, seja físico ou emocional, respeitando o amor que temos por ela e que ela tem por nós. Adotar os cuidados paliativos é deixar ir sem nunca, nunca soltar aquela mão.

*Maria Fernanda Carvalho é graduada em Medicina com residência em Medicina Interna. Atualmente é  coordenadora médica do Hospital São Marcelino Champagnat.


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